REVIEW: INFERNO (Desert Heat, 1999)

por Lazaro Cassar

Para muitos uma obra que beira o nonsense por sua falta de proposta, INFERNO carece de uma revisão que, se não o absolva em seu escopo, ao menos suscite desdobramentos que justifiquem sua estranheza. Principalmente quando se trata de um filme com Jean-Claude Van Damme, um dos grandes representantes do cinema B sem floreios (a despeito da qualidade dramatúrgica inegável de gemas como VENCER OU MORRER ou LEÃO BRANCO – O LUTADOR SEM LEI).

Praticamente uma releitura não-assumida de O ESTRANHO SEM NOME, de Clint Eastwood, INFERNO segue caminho similar ao narrar a história de Eddie Lomax, um sujeito que é quase morto por um grupo de motoqueiros em pleno deserto e surpreendentemente reaparece em uma cidadezinha como uma espécie de anjo vingador, defensor de uma população que vive sob o jugo dos baderneiros. A própria concepção do inferno metafórico, já usada no western de Clint, vai se tornando mais visível na medida em que a narrativa opta por um caminho surreal, com personagens que parecem ter saído de alguma alegoria pseudo-felliniana de tão farsescos. Aqueles que esperavam uma simples história de vingança se decepcionaram com os recortes por vezes inusitados com que a obra é costurada, como a já clássica sequência em que Lomax trepa com duas loiras (realçando uma certa plenipotência inumana de seu personagem), a idosa que possui uma cobra de estimação (a serpente, segundo preceitos bíblicos, promove como bom aquilo que Deus proibiu: não à toa, essa mesma senhora se delicia ao flagrar Lomax na cama com as duas mulheres, e vive dando tragadas em uma garrafa de whisky barato) ou o avião que sobrevoa o deserto constantemente, como uma espécie de ente superior que tudo vê, como quem aguarda um momento específico.

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O começo da narrativa é promissor, com Eddie em pleno deserto, remoído pela lembrança das inúmeras mortes que causou, prestes a dar um tiro nas próprias têmporas. Obviamente tanto o homicídio quanto o suicídio, segundo preceitos cristãos, são os pecados mais graves para aqueles que anseiam por uma passagem ao Paraíso tranquila, sendo condenados ao purgatório a fim de que remoam todo o dano que um dia causaram. “Essa noite eu sonhei com o Diabo! Ele reservou um andar inteiro só pra mim!”, diz um Lomax desesperado à imagem de seu velho amigo – e companheiro de carnificinas – Johnny (Danny Trejo). Cabe mencionar a bela performance de Van Damme nessa cena, emanando vísceras na composição de um homem que “precisa continuar bebendo, pois bêbado se torna inofensivo”, segundo suas próprias palavras.

E aqui INFERNO inicia seu rumo a uma narrativa calcada na estranheza. Quem é Johnny? Por que apenas Eddie o vê? A resposta não tão óbvia reside tanto no fato de Johnny ter passado pelo mesmo trajeto existencial de Eddie – tendo purgado todo tipo de sofrimento possível em busca de uma redenção que enfim encontrou – quanto por morar sozinho em um casebre em pleno deserto, o que pode ser lido como uma espécie de Eldorado particular (lembremos que Johnny é índio, e a América profunda, desolada, seria sua concepção de éden) atingido depois de uma possível temporada no Inferno. “Você parece em paz”, diz um agonizante Johnny a seu amigo. E realmente está. E fará de tudo para que Eddie consiga se redimir de seus erros passados, fazendo-o atravessar o inevitável umbral – representado pela cidade decadente – a fim de que atinja a mesma instância redentora em que o velho índio hoje reside. Daí a questão: teria sido Johnny a colocar os baderneiros no trajeto de Eddie no instante em que este estava prestes a cometer suicídio (já que o grau de irrevogabilidade desse pecado tornaria praticamente inalcançável a chegada ao Paraíso)?

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Infelizmente as metáforas usadas por John G. Avildsen (ROCKY) na construção gradativa dos significados vão se tornando cada vez mais apressadas e até amadoras, e sua sutileza em nada agrega valores estéticos à obra. Pelo contrário. Se o diretor optasse por um caminho mais inteligível e cru, talvez INFERNO funcionasse melhor, já que a pressuposição de que todos ali estão mortos é fantástica (na primeira cena em que a cidade é mostrada, o enquadramento privilegia uma imensa cruz sobre uma paupérrima igreja; e sempre que Lomax mata alguém – obviamente os vilões – o personagem de Pat Morita descarrega de um trator os corpos num despenhadeiro , possível símile do inferno, inegociável e excruciante. O olhar de soslaio sobre esses dados aqui funciona, mas carece de desdobramentos que amplifiquem o choque do espectador, que provavelmente passará batido por essas informações). Lomax seria, pois, a redenção personificada que retiraria os habitantes (assim como a si mesmo) dessa zona de limbo – desse umbral – ao suscitar ímpeto e galhardia em suas vidas.

Uma personagem importante, ainda que mal aproveitada na trama, é a linda garçonete “que faz uma torta deliciosa”, nas palavras de Johnny. Para o índio, a aproximação de Lomax da bela moça de olhos azuis será o fio condutor que garantirá a consecução de suas ações na cidadela, já que a singeleza e a generosidade da dama, constatadas por um Eddie estupefato no momento em que a vê, serão os motores que impulsionarão seu senso de nobreza (há algo de angelical no semblante da moça, e Eddie se mostra muito mais maravilhado com essa carga de bondade que a bela suscita do que desejoso por seu corpo).

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E por aí vai a narrativa oscilando entre cenas de nítido escapismo – tiro, porrada e bomba – e sua proposta subjacente. A cena final, em que os personagens se despedem do vilarejo e entram em um ônibus de turismo, uma metáfora extremamente camp de sua redenção, fecha com certa canastrice a ótima proposta de Avildsen, que aqui pouco lembra o gênio que alçou à fama um certo garanhão italiano nos anos 70. Uma obra precisa transcender a mera exposição de imagens através de elementos como decupagem, fotografia, enquadramentos, edição, trilha, etc. E nesses quesitos, infelizmente o outrora genial diretor fracassa, submetendo um subtexto tão sensacional desse à mera estética de direct to vídeo noventista. Mesmo o gênio Bill Conti, o homem que fez o mundo chorar com o belo tema de ROCKY, aqui simplesmente resgata a trilha de CONDENAÇÃO BRUTAL, em uma versão piorada.

Curioso observar que, desde a época de seu lançamento, em momento algum uma leitura mais apurada dessa pequena gema foi feita, sempre reduzido a mero escapismo b, ou pancadaria sem compromisso (isso nas críticas mais favoráveis). Até Van Damme, conhecido pelo marketing exagerado que faz de seus filmes – sempre frisando seu escopo dramático – sequer mencionou em entrevistas da época que INFERNO se tratava de uma alegoria do purgatório. O que nos faz concluir que a proposta metafórica foi tão mal explorada, permaneceu tão submersa diante de signos pouco elaborados (Deus/aeroplano; ônibus/Paraíso, etc), que o próprio elenco não a compreendeu. E não falta estofo a Avildsen, um esteta da superação, para delinear fraturas e processos decisivos de mudança, como em ROCKY ou KARATÊ KID. Em dias melhores, o diretor forjaria uma obra genial. Permaneceu a (ótima) intenção.

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